sábado, 24 de outubro de 2009

humanidade em crise



A questão acerca do ser é a questão originária desde a Antiguidade. Reside no pensamento do homem no questionamento de si mesmo. Desde Parmênides, interrogação nos toma de sobressalto, nos impele a um medo, um espanto de si mesmo, sobre o que nós somos mesmo diante deste ser? Tal pergunta revira-nos o estômago, pois nos tira da comodidade de supormos através da racionalização vulgar a ascensão do homem no mundo. Mas a questão é muito mais problemática e se assenta em raízes muito mais profundas. O fato é que desde a filosofia, passando pela literatura, sociologia e chegando a ciência num contexto geral, o significado do ser é perseguido.

As coisas desde Parmênides mudaram muito, mas a profundidade de seus questionamentos continua firme para a não resolução do problema ou dilema. Para quem ainda pense em termos filosóficos, a pergunta que se faz é: Quem ainda credita como medida de valor, ou de verdade, o pensamento filosófico?

Para a contemporaneidade o universo filosófico distanciou-se bastante do homem comum, mas dentro de uma visão geral foi reduzida a quase nada, e as disputas de pensamentos filosóficos e defesas de seus sistemas foram abandonadas. Giordano Bruno não precisaria hoje se preocupar em ser queimado na fogueira. Pensando a estrutura básica da humanidade hoje, é óbvio que nos deparamos com o mundo da utilidade do descartável, tudo é rápido, é cômodo, e com a velocidade que chega é facilmente descartado, dentro de um sistema giratório de passagem de validez a não validez. O que seria o mundo hoje se fossemos conceitua-lo? O mundo é utilidade. A palavra da vez é informar, se diz que o mundo é informar, mas o aspecto intrínseco deste informar o que seria? Sobre que propósitos servem este informar? Para ser útil, para quaisquer fins, não importa o fim, importa a meta, ser útil ao informar, por isso a assertiva é válida, o mundo é utilidade, esforço em desdobra-se as utilidades pretendidas dentro da esfera do informar.

O filósofo Heidegger em meados do séc. XX já se dava conta dos caminhos destinados ao homem e cheirava a carnificina a que se destinava o pensamento. A tragédia em que se insinuava o exercício do pensar ante a sua destruição diante o fenômeno da técnica. Ela, a técnica, é talvez a responsável pela desertificação do pensamento dentro desse sistema da utilidade do descartável, o sanduíche do mac que sai em um minuto, a assinatura dos lançamentos de filmes que saem na tv a cabo, as conversas descartáveis no msn, a fluidez do twitter... O útil/inútil da cultura lixo que tanto necessitamos ressalta a desertificação do pensamento do século XXI que firma uma tendência—a de que o niilismo conseguiu ainda se desdobrar na contemporaneidade, agora no modo da cientificidade. Arnold Gehen em Ende der Geschichte (Fim da história) de 1974, baseia-se em Gottfried Benn, que diz que desde 1954 o mundo não caminha pelo tempo graças a um desenvolvimento, mas unicamente a um movimento. A diferença entre desenvolvimento e movimento consiste em que, no primeiro caso, a cultura e a dinâmica social são substituídas por outras conforme o avançar do tempo. No segundo caso, que é o atual, o mundo assume, planetariamente, os ditames da civilização tecnológica que consiste na produção e substituição contínua para sustentar as engrenagens do capitalismo. A sociedade reproduz repetidamente sem criar nada de novo, mas simplesmente sustenta as engrenagens do capitalismo que necessita do consumo independentemente da necessidade. Logo, graças à reprodução repetida sem criação, a ordem se cristaliza. De acordo com este pensamento, observa-se que o niilismo pode não ter sido rompido ou ultrapassado, como queria Nietzsche, Jünger, pois, isso fazia parte de seus projetos filosóficos, uma tentativa de superação, entretanto, a assertiva heideggeriana em dizer que a linha do niilismo não foi ultrapassada, faz sentido ao seguirmos este rastro e no modo mesmo da atual conjuntura do mundo. Pode mesmo se dizer que vivemos ainda uma sociedade niilista, mas agora uma sociedade que já aceitou a morte do Deus cristão, que já viveu a Era do Caos (II guerra mundial) e agora encontra a paisagem do niilismo tecnocientifico. Mas o fato é que nós gostamos da cultura útil-inútil, pois a cada semana podemos nos divertir pensando no útil-inútil que somos nós mesmos. Heidegger pensou também em salvar o humanismo, tarefa esta perdida na visão de Sloterdijk, que usa Heidegger contra Heidegger. Não é ataque ao pensamento de Heidegger, mas uma extrema honestidade ao dizer que em um mundo onde o informar da maneira mais rápida possível é o que vale dentro da esfera de uma moderna sociedade de massas, querer Heidegger resgatar o modelo de uma sociedade poético-filosófica parece mais um conto de fadas. Entretanto, entre os letrados, o salvacionismo impera vertiginosamente. E todas as tentativas naufragam diante de nossos olhos, é só passar um olhar atento na história mundial; as grandes guerras, a dominação imposta de um povo para outro, a destruição eficiente das florestas, o esgotamento da terra em busca de suas riquezas naturais, o estado de barbárie que impera no seio da América latina, o estado de terror imposto pelas culturas islâmicas, as eficientes intervenções políticas dos lideres mundiais em paises pobres, são alguns dos exemplos. Mas o que se quer dizer aqui não é nada de novo, apenas é uma exposição das conseqüências lógicas do problema.

Para Sloterdijk, seguindo um rastro antropológico, o homem é um animal fracassado, ele fracassou como animal em seu nascimento prematuro e passou da comunhão da natureza a uma tentativa destruidora de sobre ela imperar em seu modo técnico, deste modo, seria o homem antropotécnico, desde a sua saída do ambiente animal ele seria desde já conduzido pelo modo da tecné, um modo técnico a partir da manualidade da pedra. Com isto, pensando além de Sloterdijk e voltando nosso olhar para Nietzsche e Heidegger, vivemos duas grandes eras: a era da metafísica e a Era da técnica. A da metafísica ficou caracterizada como a vigência de um pensamento grego, filosófico, que culminou em um ocidente moralizado e cristianizado que creditava todos os seus valores em um mundo divino e dele fomos reconduzidos a uma afirmação da técnica a partir da I guerra mundial, que analisado por Jünger levou o homem a sua armação Gestell, onde a vontade do homem era conduzida no eminente esforço de produzir os meios técnicos para gerar e fazer prosseguir a guerra, gerando indivíduos automatizados para a guerra.

O que se aponta também ao expor uma análise da nossa história é dizer que tanto a Era da metafísica quanto a Era da Técnica se embuiram no esforço de domesticar o homem, como fala Sloterdijk, e que seus conseqüentes esforços naufragam como foi citado.

O naufrágio do humanismo nos leva a reflexões ainda mais urgentes em nossa época: a de que se somos animais fracassados, e, se não conseguirmos através de uma cultura humanista; artística, filosófico e literária, o projeto de adestrar os nossos impulsos primários, então o que somos? Não somos totalmente animais, mas também não somos totalmente humanos e a despeito das literaturas vigente, citando Frankstein o médico e o monstro, que diabos de criatura medonha somos? Bestas feras, abortos da natureza incompreendidos em sua esfera de realidade? O que é dito, não é dito ao bel prazer, trata-se de um questionamento necessário a uma época esgotada, que assiste o esfacelamento do pensamento, que já não suporta o peso de nenhum sistema filosófico ou de ideologias políticas e não consegue fazer descer o entalo causado pelo niilismo.

Ontologia, poética, hermenêutica? Que termos mais “outside of our lives”, por assim dizer. Apesar de toda a vulgaridade tudo pode vir a ser pensado e tem possibilidade de passar por análise do real, e desse modo vejamos: alguém lembra do clássico filme fruto da cultura “utilidade do descartável” Mad Max, onde os homens conseguiram destruir suas riquezas naturais e vivem num deserto pleno, seja de falta de riquezas naturais, seja de um deserto de emoções. Pois é, um filme exemplo do fruto da massificação que prolifera desde os anos 80 faz-nos pensar essa idéia. Mas e daí? De fato é apenas uma reflexão!

Todas as grandes questões já foram pensadas, tudo é passível de discussão, mas em que é pautada a análise do real? Na sua aplicabilidade e possibilidade de mudança no seio das coisas? Então, no meio dessa torrente a filosofia se afasta, perde a circunstancialidade, porque a sua transformação é de um nível muito sutil, profundo e desconhecido—O modo mental de articulação de ideias e ideais. Heidegger, ancorado em Nietzsche, pensava de maneira astuta tal imposição da sociedade, tendo em vistas que o universo filosófico para aqueles que se lançavam a navegar como dizia Nietzsche, sorveria o homem a uma imensidão de descobertas, ou ao espanto filosófico de pensar o universo, a ampliar cada vez mais diversos horizontes, e diferentemente dentro de uma outra perspectiva. De outro lado temos a realidade vulgar, onde o homem comum está acorrentado a nunca descobrir tais perspectivas. Existem também, segundo Heidegger, certas rachaduras ou mudanças de pensamento, mudanças que estão distanciadas da compreensão do homem comum, e que são como finas rachaduras, difíceis de serem observadas a olho nu. Ora, mas que fatalidade nos parece, observar que ao filósofo foi relegada à árdua tarefa de conseguir adentrar a um nível de compreensão mais elevado que os demais. Que destino tão fatal e irremediável, afastar essa espécie de homem-filósofo, criatura tão exótica e démodé dos demais viventes. Ora, numa época em que os modismos são apenas meras repetições de modas passadas, eis que esperamos o amanhecer do homem-filósofo, um bicho grilo, pensador, que aproveita o embalo das circunstâncias para ver ao seu modo as coisas do mundo alguns diriam.

Tudo bem, quem está lendo esta “historinha” deve estar ai dizendo: hei, essa história do filósofo “o promulgador da verdade e não-verdade” é nossa amiga antiga, ora de há muito tempo conhecemos esta fábula, que já desde Platão nos é enfiada na garganta de uma só colherada, mas que de fato se antes nos custava fazer descer, já hoje a cuspimos no prato. Por que pensar na verdade, na finalidade, se há tempos não temos nem o que sorver, nem mesmo uma fonte limpa para bebermos e nos purificarmos?

E hoje se pergunta quem vive a experiência da abnegação do virtual/factual? A resposta é clara, talvez um monge do Tibet, ou um convicto yógi-místico da Índia. Até porque, em tempos de penúria mesmo as freiras de Emaús estão sendo recicladas. Mas que a despeito de todo o humor negro, é fato a determinação quase inconsciente de que há tempos na era tecnológica, vivemos enfadonhos com o demasiado útil.

O que mais perturba, sobretudo hoje é perguntar: repetindo, hoje somos o tipo de ser humano que indicava Nietzsche, no qual se destinava a falar? Carregando em si a demasiada carga de esperança, declínio e redenção da vingança? Talvez o mestre do eterno retorno ficasse desapontado com as pessoas da praça pública que ainda carregam o peso da tradição mesmo na Era da Técnica.

Parece que as perguntas levantadas caíram em desuso, mas não se enganem meus caros, entramos no jogo mais que sórdido da falta de clareza. E isso fica claro, a partir do momento em que Nietzsche lá atrás diz: ”Deus está Morto” e ainda ressalta: Nós os matamos, somos os seus assassinos! Há que felicidade plena ao ouvirmos isso não? E mais ainda, que a religião nasce do medo da dor, o cristianismo como ungüento para amenizar a dor, Deus remédio dos enfermos. Uma patifaria sem fim, mas logo nos pronunciamos ao imediato, ao rápido, ao útil, nos dirigimos ao culto do shopping center, do relógio importado da Coréia, e ao perfume francês para escondermos a carne podre que nos vestimos.

Repetindo, vivemos duas grandes Eras: a Era da metafísica e a Era da Técnica. E ao fecharmos estas duas, a comunidade filosófica pareceu com isto achar que o pensamento tinha terminado o clima de catástrofe deixado pelo niilismo, já estavam acomodando suas cadeiras em torno das ruínas deixadas. Entretanto, é inevitável após esta reflexão apontar que o ideal e o esforço de superação pensado, esgotou-se no seio mesmo da terra. Ainda nos deparamos com o deserto a ser cruzado do niilismo, respondemos por uma zona ou ponto zero que se não está em conflito aberto, apenas fechou os portões do pensamento por uma cultura de massas, alienada, estagnada em que impera o útil/inútil descartável do cotidiano. Através de um niilismo tecnocientifico em uma sociedade tecnicizada ancorada na repetição de si mesma. Esta poderia assim ser caracterizada como a Era da informação, de algo que se perde como verdade e apenas se sustenta como complexo de integração e desintegração, como dizia Bernard Marshall. “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. É sentir-se fortalecido pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e freqüentemente destruir comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças, a lutar para mudar o seu mundo transformando-o em nosso mundo. É ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades de experiência e aventura aterrorizada pelo abismo niilista ao qual tantas das aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda quando tudo em volta se desfaz. Dir-se-ia que para ser inteiramente moderno é preciso ser antimoderno: desde os tempos de Marx e Dostoievski até o nosso próprio tempo, tem sido impossível agarrar e envolver as potencialidades do mundo moderno sem abominação e luta contra algumas das suas realidades mais palpáveis.”

E por fim continuamos escravos a uma maneira de pensar e agir que nem sabemos se é nossa. Assim, as grandes massas que não sentem o cheiro de podre em que se escondem nossos vãos pontos de vista poderão então esquecer toda essa história de verdade em favor do inútil que somos.
Williane Oliveira