quarta-feira, 14 de março de 2007

O sopro



Um sopro de vida contaminava o ar. Vindo do lado norte, da antiga construção com suas torres de estranhos contornos em espiral, catalisadores por excelência de energia cósmica, fonte da imponência e arrogância de antigos deuses-sacerdotes que outrora dominara aquele lugar que agora só tinha como seu dono a vegetação local. Desenhos indefinidos e árvores secas inclinavam-se sobre a entrada da torre mais alta, por sobre a sacada, como também uma espessa fuligem que se confundia com uma areia negra e sebenta de cheiro forte tornando o ambiente desdenhosamente hostil.
Confundida entre as sombras ela se ocultava. A espreita de algum movimento, ela deslizava. Condenada, perscrutava o sopro com perfume de lírios brancos que a fazia retornar ao mesmo lugar repetidas vezes resignadamente na esperança de encontrar o jazigo de sua alma. Perdida em meio ao som das musas enviadas de poisedom misturado ao quebrar das ondas nos imponentes rochedos, o delicioso turbilhão de vozes melodiosas enrijecia aquele corpo cansado, emudecido ante a vigia imposta pela mente. Mas até mesmo um corpo cansado tem linguagem própria e envia a uma mente ávida o pedido de repouso, pois, quanto tempo ainda suportaria aquele auto sacrifício imposto? E assim, caindo em um sono profundo, secretamente sua mente fugia por alguma passagem obtusa e ominosa que se desvendava ardilosamente no sono, e que tal qual um segredo não se deixava revelar nem a si próprio no momento do retorno à prisão imposta pelo corpo, fazendo sua mente se tornar o ardil necessário para todas as ilusões sutilmente projetadas. Pois o deleite do mundo onírico é veneno fatal na busca além-ser que permeia as mentes.
Viajando por entre abismos a embarcação dos mundos inferiores seguia na sua busca ao inominável, lentamente navegando ao seu presumido destino, sob cavernas lodosas e rios de larvas onde o vapor quente criava uma cortina de fumaça encobrindo vertiginosamente a pequena embarcação. Sob todos os lugares presentes se erguiam olhares sorrateiros ante tal embarcação desconhecida. Havia um horror natural de todas as criaturas daquele universo rastejante que os impactavam de tal maneira sórdida de modo a manterem-na na penumbra, encurvadas, quietas e ajoelhadas sob um silêncio sepulcral. Apenas a espreitar a inaparente figura prostrada à frente da embarcação que se mantinha velada debaixo de um manto negro escondendo a delicada e fina veste branca que cobria a sua espectral figura resplandecendo todo aquele temerífico brilho destinado a adoração sacerdotal em que era envolvido o seu semblante. Reverenciada e temida, seus olhos aguados, obscurecedores de almas, transformava tudo a sua volta em sombras pálidas do que havia sido outrora.
A subida foi longa e árdua revelando a urgência de seu acontecimento, toda a destruição deixada para trás se fazia indicio de uma desvairada busca por um mundo de sonhos que havia sido deixado para trás e que mais uma vez pelo jogo terrífico dos além- deuses estava prestes a se descortinar . Mas o perfume dos lírios brancos que invadia as profundezas abismais anestesiava a todos os tripulantes da embarcação produzindo uma intensa atmosfera de fantasias misturada a uma melancolia vaga e indefinida que os atordoava e os levava de encontro ao apelo inconsciente da morte, que vaga sempre certa por entre mentes alucinadas, mesmo naqueles que já fizeram a travessia para além do mundo dos mortos—Os notívagos sem alma.
Ah, o perfume! Que êxtase, que delírio terrestre, que danação! Era esse o perfume perdido no qual despertava a tenção da musa petrificada, insana na imersão de seus vãos desejos abissais, um perfume que trazia o desbloqueio de emoções até então perdidas e a sensação de um reconhecimento vago de algum momento de paz misturada ao acalento doce de uma manhã tenra e uma aurora glorificada. Este turbilhão de emoções provocou uma tensão resignada à figura descontente.
A chegada à saída das muitas cavernas que circundavam a ilha gelou a infernal figura. Enfim estava próxima. E essa circunspeta proximidade tornava-se ainda mais nítida com a audição de tambores em uníssono, inflamados por gritos hostis de bestas ensandecidas pela influência da gigantesca lua sangrenta que despontava céu adentro. Evocando e clamando toda a malignidade em exortações ao sagrado, ao misterioso bradavam a todas as extremidades da superfície terrestre o rompimento da fina barreira fechada pelos sete selos do cataclismo cósmico.
A embarcação vinda da imensidão do distante mundo inferior chega ao seu ponto final e sob a baixa maré ela desce molhando as vestes brancas da espectral figura, mas de beleza incomparável, sobre-humana. Seu corpo molhado até a cintura caminha sobre a areia e o manto é jogado sobre o chão e assim segue. Aquele som dos tambores causou aflição aos seres inferiores escolhidos para tal missão e em sua volta o clima de insanidade tomou proporções catastróficas, um bando de criaturas cadavéricas, gemendo freneticamente e aturdidas lançam-se sobre o frio mar Egeu. Saíram de catacumbas fechadas e silenciosas para descobrirem os seus fins congelados no mar do desconhecido nada. Assim ela segue completamente só no seu intento, atordoada pelo perfume anestésico e vagar por templos esquecidos a cair num sono vago e profundo. Após um transe fulgaz e intermitente o despertar se dá quase que como um sopro de vida, revigorada pela força maestra do luar, irradiando um brilho lustroso que renova o interior dos seres. Insanamente ensaiando passos descompassados, segue o ritmo da odiosa melodia passando por um imenso círculo de pedras, ela sobe a um monte chegando até a antiga construção de torres em espiral aonde os sons de outrora vão resumindo-se ao silêncio da noite. O cheiro de lírios brancos continuava presente e se tornava cada vez mais intenso, assim brotava o pensamento da certeza de que daqui provinha o cheiro que soprava até as cavernas distantes nos mundos inferiores.
Percorrer aquele imponente corredor de mármore por de trás da antiga construção parecia não ter fim e levava a uma escadaria que dava para um outro ponto do monte, onde ao descer se encontrava um lindo jardim com árvores frondosas e flores diversas. Em seu centro haviam sido deixados montes de lírios a queimar e muitas oferendas deixadas. Havia de fato passados alguns seres naquele recinto sob algum propósito deífico. Um pouco mais na frente galhos em forma de serpente encobria uma pequena passagem que levava a uma pequena clareira que era particularmente embebecida pela lua de sangue, um monumento da natureza primeva como demonstração de sua arrogância e plenitude ao mundo primitivo.
Ao se abrir à clareira ante a figura espectral antes adormecida, ela caiu ajoelhada num pranto desesperado. Gritos lamuriantes acordaram toda a extremidade do espaço terrestre, até mesmo de universos distantes. O que havia sido selado e manido em silêncio por décadas e gerações se rompia num choro descompassado e rancoroso. Então, um rio de sangue banhou a sua veste branca. Toda a sua dor dissipada em lágrimas de sangue. Estava ele de frente para aquela enorme estátua do mais belo mármore, engenho de mentes prodigiosas, construída sob a égide de eras longínquas, alicerçadas no ser que reveste o mundo como prova de sua magnitude e exuberância. Era ela, sempre havia sido, frente a frente consigo mesma, face impiedosa, dura, enrijecida. A mesma figura espectral, intacta, intocável, espetáculo de toda a dor, dilacerada diante o temor. Então, a despeito de todo o horror, escarnecida pela visão monstruosa, a senhora dos mundos inferiores, lança-se com um bloco de pedra a atingir pavorosamente a estátua, gritando ensurdecedoramente. Rachando e depois fatalmente partindo em pedaços a estátua. O tilintar dos pedaços de mármore no chão foi o suspiro final do que de verdade nunca existiu. Apenas resquícios ou fragmento desconexos de fantasias antigas que a memória não apagou.

W. O.

Nenhum comentário: