terça-feira, 23 de fevereiro de 2010


Castelo de cartas


Sou frágil, não queria ser, mais sou demais

E tudo me quebra, só sei fingir que não sou.

Desprendo-me facilmente de minhas funções,

Entendo até quando não devia entender.

Sinto até o sem sentido, até a última gota,

Assim, todo o tempo perdido fica mais perdido ainda.


Nada me acalma, pelo contrário, tudo me afeta,

Os pequenos cochichos, os sons mais abafados,

As ideias mais ousadas e terríveis, as chuvas sem gosto.

Saboreio até o gosto do nada, de tudo, das ínfimas coisas-

Das autênticas e inautênticas.


Digerir hostilidades é quase um talento,

mas nunca um ditame de prazer.

E que tempestade eu carrego,

Tudo me inunda, me derruba, me destrona.

Eu não ando por aí, não posso, não devo

No meu reino estou presa e sozinha.

Mas as vozes continuam ao meu redor-

Uma coroa para as minhas profundas fraquezas,

Mas uma cabeça a ser cortada.


De que tamanho queres ser rainha?

Do tamanho de um castelo para esconder bem o calabouço.

Desce do trono rainha, sinta o ar das montanhas,

As coisas estão fora de seu lugar, sem controle...

Apenas supõe pensamentos, repreende a insatisfação,

Tenuamente passional, tenuamente pessoal,

Fora dos teus muros somente sorrisos e sarcasmos,

No interior a rocha se decompõe.


De que tamanho queres ser rainha?

Petrifica as hostilidades e segue sem rumo,

E todas as coisas voltam ao seu lugar sem razão,

Acorda pela manhã e sente gosto amargo da tua solidão,

Molesta teus sentimentos com o cotidiano inútil e funcional,

Deixa as circunstâncias te arrastarem, não há nada para fazer

Só recolocar o castelo de cartas,

No interior tudo está fora de controle.


Williane Oliveira

Um comentário:

H. Feldhues disse...

Curioso como lentamente o império da ordem foi erguido, pedra por pedra...
Que era então Newton, e suas divagações, para a Europa do século XVII? "Eine Lichtung"?
A ciência moderna certamente forneceu mais que respostas aos enigmas da natureza, contribuiu para a internalização de uma autoridade exterior às sensibilidades individuais. Pensar e sentir, desse modo, não escaparam ao olhar vigilante da razão, que ainda hoje sussurra aos ouvidos: “tudo em seu lugar, com sua função, sua lógica...”
A felicidade, no projeto racionalista construído e reproduzido, nada mais é que a satisfação mesquinha do controle sobre o acaso, a destruição dos espaços de incerteza e o clareamento das zonas de indefinição. O homem, todavia, é átomo em expansão, que não se contenta em caminhar pelo conhecido. Refrear/calar o turbilhão intempestivo em si contido é condição que legitima a ordem, a razão... E aqueles que, por descuido ou juventude, deixam-se transbordar, no exílio faz morada. “Digerir hostilidades é quase um talento”, como deve ser aprender a caminhar entre os homens. Ensina Nietzsche que “o homem é um rio turvo. É preciso ser mar para, sem se toldar, receber esse rio.”
Embora a ordem impere sobre o cotidiano, “as coisas estão fora de seu lugar, sem controle...” Como negar a ambivalência intrínseca à natureza humana: ordem e caos, razão e irrazão, ciência e arte não se excluem em qualquer época. Amar a incerteza é algo que foi perdido com a mecanização das práticas diárias. O inútil tornou-se imoral. Não nos afastamos igualmente de nós mesmos? Quem ainda pode encontrar a beleza em flutuar no caos interno, depois de anos de letargia sobre o mundo do represamento, da segurança, da razão? Trocamos, como observou Freud, uma parcela de nossas possibilidades de felicidade por uma fração de segurança.
Reconhecida a ambivalência, a ordem pasteurizada, funcional, do cotidiano não passa de simulacro: “Nada mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos.” (Goethe)